Fragmentos de leitura de A mais-valia revisitada
Abril de 2018 - Capítulo III: Para além de Shannon e Moles –– a mensagem econômica.
1.
O assunto de Medeiros neste capítulo é a relação entre preço e valor, e ele procura examinar a questão de um ponto de vista que o ajude a invalidar cientificamente a teoria da mais-valia de Marx.
No primeiro parágrafo, Medeiros coloca as coisas em linguagem aristotélico-tomista: preço como ato, valor como potência que se atualiza no preço, potência como algo presente como que no interior e no fundo do próprio ato (em minha leitura de Aristóteles, a potência ao invés disso é atirada para o futuro, são os futuros possíveis inscritos na forma, e não há neles nenhum caráter de “interioridade”).
No Parágrafo 2 Medeiros afirma “E o que é o preço de um produto? É o somatório dos custos –– que são outros tantos preços –– de todos os insumos materiais e imateriais diretos e indiretos necessários à sua produção, do lucro do produtor, dos impostos, dos custos de transportes, da distribuição e da comercialização” (o grifo é meu). A afirmação de Medeiros coloca de saída e sem qualquer questionamento como "produtor" aquele que tem efetivamente algum lucro na produção, ou seja: o que Marx chamava de o "proprietário dos meios de produção". Medeiros faz isso ignorando a condição de produtor do trabalhador, e existe aí já de saída um erro falacioso que frauda as condições reais em que as coisas ocorrem. O lucro aparece como um preço entre outros, o preço cobrado pelo “produtor”-proprietário. Mas cobrado de quem? De si mesmo? –– ignorar essa questão não faz sentido.
Podemos raciocinar de outro modo, talvez mais próximo do modo de raciocinar de Medeiros: tomar “preço” em sentido abstrato, sem considerar a condição concreta de que há alguém a quem a produção cobra os custos que se somam nele. Se fizermos isso, poderemos dizer como Medeiros, de maneira simplificada, que a produção tem um preço (ou conjunto de custos). Mas neste caso então a questão passa a ser a de saber sobre quem recaem esses custos (ou "outros tantos preços”, como diz Medeiros).
Seguindo mesmo assim esse modo de raciocinar, que parece ser o de Medeiros, há um custo que (supõe-se) não recai sobre o trabalhador: o de seu salário e seus benefícios adicionais (que note-se, no tempo de Marx não existiam). E há um "custo" que, segundo Marx observa (acertadamente aliás), não recai sobre o proprietário dos meios de produção de sua época: é o custo de produção chamado “lucro”.
(Importa notar, eu diria, que nos tempos atuais já não é mais possível fazer coincidir sempre o proprietário dos meios de produção com o investidor-capitalista, nem mesmo fazer coincidir este último com o capitalista mais perdulário, mais propriamente gastador do seu capital acumulado, do que reinvestidor, porque são categorias que acabam tendo atuações de efeitos economicamente diferentes –– o investidor pode ser também um pequeno acionista, e pode haver uma multidão deles, o que altera também as considerações a serem feitas a respeito de quem é o "capitalista").
2.
O custo do trabalho fornecido pelos trabalhadores (e dos benefícios adicionais a que têm direito) na verdade só recai sobre o proprietário capitalista quando ele não consegue repassar esse custo aos consumidores ou aos próprios trabalhadores, ou ambas as coisas visto que os trabalhadores são também, em uma outra face sua, consumidores. Esta é toda a questão que, examinada mais a fundo, dará origem ao conceito marxiano de mais-valia. E ao colocar as coisas nos termos em que as coloca, Medeiros simplesmente ignora tal questão logo de saída. –– Como pode então pretender fazer a crítica daquilo que ignora, daquilo que desconsidera, daquilo que deixa de fora de seu raciocínio logo de saída?
No parágrafo 2, Medeiros declara que “Sendo o preço de venda de um produto a soma final de uma acumulação piramidal de preços de uma infinidade de insumos, esse preço é, basicamente, função da complexidade do produto” –– segundo os termos da Teoria da Informação acerca da questão da complexidade. É irônico que chegue a essa conclusão (de fato tão interessante) a partir justamente de uma simplificação que ignora complexidades melhor tratadas por Marx! Mas sigamos adiante.
3.
Nos parágrafos seguintes do capítulo, Medeiros estabelece o preço como uma mensagem econômica, que enquanto mensagem pode ser tratada segundo as fórmulas de tratamento da teoria da informação.
Haveria nessa mensagem um componente objetivo, mensurável, que estaria no cálculo dos insumos envolvidos na produção, e um componente subjetivo, inquantificável, variável escapando a consensos, e intransferível de um receptor a outro. O componente objetivo seria “o substrato da mensagem subjetiva, sem o qual esta não pode existir”, um substrato “traduzível de moeda para moeda e negociável por troca", e "transferível de um Receptor para outro".
A escala ou proporção em que os dois componentes, o objetivo e o subjetivo, entram na composição, segundo Medeiros é imprevisível.
Aqui podemos observar o seguinte: o tratamento que Medeiros dá àquilo que chama de "componente subjetivo” é insuficiente e completamente insatisfatório –– e insatisfatório de maneira desnecessária –– inclusive porque o próprio Marx, criticado por ele, já tratou do assunto de modo bem mais consistente (embora ainda insatisfatório) em suas teorias da ideologia e do fetichismo da mercadoria, que afetam o mercado de consumo.
Aquilo que para Medeiros parece um fator irredutível de imprevisibilidade (o componente subjetivo), só tem esse nível tão elevado de imprevisibilidade quando consideramos uma região pequena do mercado de consumo, de uma perspectiva microeconômica. De uma perspectiva mais macroscópica, há padrões de comportamento subjetivo consideravelmente generalizados que são discerníveis no consumo e cujas razões podemos buscar.
Marx encontra razões que explicam muitos desses padrões naquilo que chama de “ideologia”, que podemos resumir como sendo uma imagem superficial e falsa da realidade, produzida ora inconscientemente ora semiconscientemente pelas classes economicamente dominantes, imagem feita de uma colagem de compreensões parciais e por isso mesmo distorcidas da realidade, e que envolve o ocultamento do processo de trabalho e produção dos bens materiais, portanto também das falhas de inacabamento nas coisas, apresentando-as sempre como perfeitamente acabadas como se surgissem do nada, num “lustro” que ignora o trabalho pelo qual foram feitas –– o que caracteriza o "caráter fetichista da mercadoria”.
Pessoalmente, acho muito bem construída essa concepção marxiana –– exceto pela presunção dogmática que ela carrega, de que a visão que fornece da realidade em oposição à "ideologia" seria a própria apreensão da realidade em si.
Eu diria, corrigindo a concepção marxista segundo minha própria compreensão das coisas, que há nas ideologias –– no plural, em todas elas e incluindo o que considero também a ideologia de Marx nesse mesmo sentido –– não diretamente o ocultamento de alguma realidade, mas sim o ocultamento de um rumo proposto para a sociedade (ou de elementos que entram na composição desse rumo proposto), e que o ocultamento de realidades (ou partes da realidade) figura apenas como uma consequência estratégica indireta e importante (inconsciente ou não) desse primeiro ocultamento.
Abril de 2018 - Capítulo IV: A Mais-Valia –– o Valor de Troca
1.
Neste capítulo, Medeiros cita uma seleção de 39 passagens de textos de Marx em que este último apresenta sua teoria da mais-valia e suas reflexões sobre o valor de troca, intercalando essas citações de vez em quando com algum comentário crítico. As citações são extraídas das obras O Capital; Salário, preço e lucro e Para a crítica da economia política.
Essa seleção de citações é feita, segundo o próprio Medeiros, "seletiva e simplificadamente", e "usando, quando não excessivamente longas e complexas", as próprias expressões de Marx. As citações, acompanhadas de vez em quando de algum comentário crítico muito breve, são numeradas, e a numeração vai até 40, mas apenas porque um dos números (o número 32) não é de uma citação, mas apenas de uma exclamação irônica expressando a indisposição de Medeiros (ou sua disposição desfavorável) em relação a Marx, que segundo ele usou um "truque" sofístico de raciocínio falacioso para sustentar sua teoria, e enganou a uma imensa quantidade de economistas no mundo que consideraram sua teoria da mais-valia uma grande descoberta científica.
É uma passagem suficientemente curta para a citarmos aqui:
"37) Ah!!, aí entra em cena a genialidade de Marx, sua habilidade de prestidigitador, seu mais glorificado 'truque' ".
Examinemos isto esteticamente: há algo de exagero e descontrole nessa interjeição enfiada (como um "ato-falho", diria Freud) no meio de uma sequência numerada de citações de Marx, destoando do conjunto. Essa sequência de citações –– a serem comentadas criticamente por Medeiros depois, no capítulo seguinte –– parecem estar aí com um propósito: o de garantir cientificidade e objetividade, uma base de leitura correta e imparcial do texto a ser criticado.
Mas se Medeiros inicia seu livro propondo-se a fazer uma análise fria e científica da teoria da mais-valia de Marx, esse "caco"estético enfiado entre as citações com o número 37 sugere outra coisa: como se vê, Medeiros parece não conseguir conter sua parcialidade em meio ao próprio momento do que deveria ser um esforço nítido nessa direção –– o que acaba colocando sua alegada pretensão de cientificidade sob suspeita rapidamente aos olhos de qualquer leitor minimamente crítico.
2.
Os breves comentários críticos às vezes intercalados às citações de Marx são sobre as contradições que Medeiros nos indica entre citações do próprio Marx. E o que é estranho é que Medeiros nos apresenta as próprias citações de Marx como se dessem testemunho por si mesmas dessas contradições... mas examinando uma a uma as supostas "contradições" apontadas por Medeiro, encontrei sempre pontos de simples e clara coerência de Marx. Destarte fiquei sem compreender o que é que Medeiros entende por "contradição". Procurarei demonstrar isso em cada um dos casos.
Medeiros, mais precisamente, aponta contradições entre as proposições de Marx que ele cita entre a proposição 5, de um lado, e de outro as proposições 4, 8, 10, 11, 17 e 18. Também aponta contradição entre as proposições 33 e 34 de um lado, e de outro as proposições 22, 27 e 39. E na proposição 39 encontra uma contradição com a 34.
Como efetivamente em todos esses casos sem exceção as citações de Marx apresentadas me pareceram, pelo contrário, bem coerentes umas com as outras, vou ter que fazer o esforço de examinar os textos dos quais essas citações foram extraídas para ver se Medeiros nos apresentou as passagens corretas para exprimir as contradições que diz ter encontrado, e se mesmo assim Marx me continuar me parecendo coerente nesses pontos examinados, terei que fazer o esforço de me colocar no ponto de vista de Medeiros para tentar endender por que torções interpretativas acabou vendo nessas citações as contradições que lhe parecem tão evidentes.
Medeiros ainda nos informa, depois da proposição 24 citada de Marx, que "Este trecho e sua sequência, em O Capital, são obscuros e inconsistentes". Vou precisar examinar com cuidado a referida passagem no próprio texto de Marx (e em seu contexto na obra) para verificar em que medida posso ao não concordar com essa observação de Medeiros.
3.
O posicionamento básico de Medeiros, em sua crítica à teoria da mais-valia de Marx, parece estar apoiado na ideia marxiana (segundo Medeiros) de que o pagamento do trabalhador se reduz ao que serve à sua manutenção enquanto força de trabalho, mas ao mesmo tempo (ainda segundo Medeiros) Marx vê o trabalhador sendo levado a trabalhar bem mais tempo do que isso, e essa sua produção extra sendo apropriada pelo capitalista.
Mas (esta parece ser a base da crítica de Medeiros) como o trabalhador estaria trabalhando esse tempo extra se sua força de trabalho não estivesse sendo reposta o suficiente também para isto? De onde tiraria sua manutenção como força de trabalho para esse trabalho extra? –– Este parece ser o ponto falho que Medeiros vê na teoria de Marx. No entanto, a resposta a essa crítica me parece tão estarrecedoramente banal e simples, que me surpreende muito Medeiros estar colocando em jogo um bopbagem dessa dimensão –– de modo que suponho que haja alguma coisa que ainda não entendi bem em seu texto de crítica a Marx, porque não é possível que seja só isto.
Digo isso porque nas próprias citações de Marx colhidas por Medeiros há a afirmação marxiana de que "O consumo produtivo e o consumo individual do trabalhador são totalmente diferentes. No primeiro opera como força matriz do capital, no segundo realiza funções vitais fora do processo de produção" –– proposição 24 (a mesma que Medeiros julga ser parte de todo um trecho "obscuro e inconsistente" da obra de Marx.
Os próprios textos que Medeiros selecionou de Marx, considerados em seu conjunto, dão a entender que ultrapassado o limite das forças que o trabalhador dedica ao trabalho produtivo, novas forças serão extraídas dele e conduzidas a essa produção extra ou excedente.
Novas forças extraídas de onde? –– Caramba, Medeiros! Mas não é evidente?!! Extraídas –– infelizmente –– daquelas que adquire pelo seu consumo individual, forças originalmente dedicadas a "funções vitais fora do processo produtivo" (por exemplo dedicadas a atividades de lazer, de convívio social e familiar etc.). Ou será que Medeiros pensa que esgotadas as forças que o trabalhador despende no trabalho ele cai imóvel feito uma batata despencada do saco para apodrecer no chão, como se não houvesse qualquer vida ativa fora do processo produtivo?!
O argumento de Medeiros, que me parece pecar por excesso de formalismo e falta de observação de fatos cabais da realidade do trabalhador –– em especial no tempo de Marx, em que muitos dos direitos trabalhistas ainda eram quase um sonho ou uma utopia –– parece ser o de que algo que tem suas forças tomadas na produção e repostas (em salário) apenas na medida justa para sua manutenção como força produtiva, não poderia continuar o processo produtivo para realizar o tal excedente apropriado pelo patrão na mais-valia, donqual Marx fala, porque isso exigiria despêndio de uma força não sustentada, não paga, vinda do nada, uma força que não teria como existir.
Se o argumento for realmente este, trata-se de uma flagrante besteira. Supõe que o trabalhador não cai imediatamente morto apenas porque sua força despendida no trabalho vai sendo reposta para que possa sobreviver, e que se não houvesse mais energia transmitida a ele pelo patrão na estrita medida do necessário para a execução do trabalho produtivo, não seria possível a ele realizar o tal trabalho excedente de que Marx fala.
Medeiros não se dá conta de que para Marx o trabalhador está sim caindo morto naqueles tempos, por causa desse dispêncio extra de energia. Só que isto não se dá de imediato e microscopicamente em um trabalhador apenas, e sim gradualmente e historicamente para a massa dos trabalhadores como um todo. Não se dá conta de que para Marx, afirmar que o patrão paga ao trabalhador apenas o suficiente para o seu sustento enquanto força produtiva tem, em primeiro lugar, o sentido de procurar manter o discurso no campo da economia política; e em segundo lugar, ao mesmo tempo (e mais importante), tem o sentido crítico de afirmar que o que está sendo pago ao trabalhador não basta para efetivamente manter suas condições de vida no conjunto do que ele é, enquanto pessoa humana, mas apenas para o manter trabalhando enquanto o resto de sua vida vai declinando e decaindo vertiginosamente.
4.
A luta de Marx para que a desunião e competição mútua dos diferentes setores do proletariado seja superada em uma grande união internacional de trabalhadores caminha também paralela a essa percepção. Porque com a desunião dos diferentes setores do proletariado, e do proletariado dos diferentes países, as forças do capitalismo (ou seja, da acumulação do capital) podem manobrar sua distribuição das condições de sobrevivência entre os proletários do mundo quase a bel prazer, levando a expropriações maiores aqui, menores ali, conforme o estrategicamente mais vantajoso para o resultado final e geral pretendido, que é sua acumulação de mais capital. Segundo Marx, de fato, o capitalismo já estava se organizado mundialmente e internacionalmente em sua época, e os trabalhadores ainda não. Era preciso lutar por essa organização.
E um traço de otimismo em Marx é precisamente a sua ideia de que, quando esse declínio e decadência vertiginosa das condições de vida dos trabalhadores atingissem um nível intolerável, talvez –– na medida em que não cheguassem a se tornarem parte do lumpem desempregado e miserável apenas à espera da morte –– esses trabalhadores acabassem se organizando e tomando atitude, pressionados pelas próprias circunstâncias.
Podemos concordar ou não com o conjunto do raciocínio de Marx e com os posicionamentos que sustenta embasado nesse raciocínio. Mas não me parece ser um raciocínio nem de longe tão recheado de incoerências ou "contradições" como Medeiros supõe. Muito pelo contrário.

