Fragmentos de leitura dos "Discorsi" de Maquiavel
sumário
Advertência inicial
EU — Digo de saída que minhas leituras de Maquiavel aqui serão bem menos saborosas do que a leitura direta do próprio Maquiavel, porque ele escreve refletindo a partir de exemplos, extrái princípios gerais de casos particulares narrados, e a narrativa desses casos é saborosa de se ler. Aqui vou me concentrar nos princípios extraídos, e não nos exemplos e casos particulares narrados.
Dedicatória de Maquiavel a Zanobi Buondelmonti e Cosimo Rucellai
Maquiavel — Maquiavel nesta dedicatória valoriza o conhecimento nos poderosos, e lastima que haja poderosos sem conhecimento (o que significa sem competência) e gente de conhecimento (competente) sem poder.
EU — Digo que há uma margem de ignorância intrínseca no poder. O poder instrumentaliza o que está a seu redor para utilizar a seu serviço, mas instrumentalizar significa coisificar e não tem como coisificar por completo o vivo, restando neste sempre uma margem ignorada pelo poder ou que, não ignorada, não está sob seu controle.
Mas o poder, em sua profundidade , não é personalizado: é uma força cega de autoconcentração, que como um vírus, se reproduz aproveitando (coisificando e instrumentalizando) o que há ao redor. Sejam coisas vivas ou não. Faz isso por meio de um parcelamento abstrato do coisificado, que descarta como detrito inútil (excreção de lixo) o que não pode aproveitar, ignorando-o — o que é ignorância mais uma vez, em sentido mais amplo.
O titular (vivo) do poder pode captar que há essa ignorância intrínseca… mas não tem ação real sobre o processo crescentemente ignorante de acumulação de poder. Pelo contrário, é o processo de acumulação de poder que se aproveita do seu titular, instrumentalizando-o, assim como instrumentaliza tudo o mais. O titular apenas se coloca em posição na qual possa tirar proveito do processo, e na qual sua “decisão livre”seja ainda útil ao processo.
Deste ponto de vista, Maquiavel continuou ainda preso ao humanismo que pretendia superar — porque não captou completamente em que medida os processos de concentração de poder transcendem a vontade humana. Para ele essa transcendência aparece apenas no que Hobbes captou dele: no fato de que é preciso pressupor que os homens são maus para sobreviver, e isso leva a uma dinâmica de acumulação de poder (bem captada por Hobbes e Fichte em suas leituras de Maquiavel) da qual não se pode fugir.
O que estou colocando aqui, no entanto, é que essa dinâmica independe da bondade ou ruindade humana, independe da disposição específica dos seres humanos. Porque depende na verdade da segunda lei da termodinâmica, da lei da entropia. O processo de concentração de poder é uma sistematização natural da dissolução do poder (ou do desempoderamento) nos arredores do foco em que o poder se concentra. É apenas a outra face dessa dissolução.
E quando digo “nos arredores” estou me referindo aos arredores topológicos num sentido que combina a topologia de Kurt Lewin com a noção de “referência” da relatividade de Einstein: o que está nos “arredores” de algo é o que se relaciona direta ou indiretamente com esse algo, quando considerado do ponto de vista desse algo, isto é, tomando-o como referência relativística. É o que se movimenta ou modifica em relação a esse algo ou quando consideramos esse algo como “ponto fixo” da nossa observação. O movimento ou modificação a que me refiro aqui é então precisamente o desempoderamento dessas coisas que se relacionam com algo que é um foco ou ponto de concentração de poder.
Esse desempoderamento do que se relaciona direta ou indiretamente com o foco de concentração de poder é acompanhado de descaracterização, indiferenciação. O que é coisificado e dividido em partes abstratas úteis como instrumentos para esse foco, torna-se também cada vez mais facilmente substituível.
Marx examinou o processo nos focos de concentração de poder econômico. Não soube ou não quis examiná-lo em outras formas de poder sem considerá-las necessariamente dependentes dessa forma especificamente econômica. Preferiu raciocinar como se outras formas de poder não pudessem autonomizar-se independentemente ou com um grau relevante de indepenência em relação à forma econômica.
Livro 1
Introdução
Maquiavel — Os “atos admiráveis de virtude que a história registra”são “mais friamente admirados do que imitados (longe disto, todos parecem evitar o que sugerem[…])”. Em outras áreas se segue a experiência do passado, mas na política e na guerra isto é deixado de lado. Há uma “ignorância do espírito genuíno da história. Ignorância que nos impede de apreender o seu sentido real e de nutrir o nosso espírito com a sua substância.”
Para corrigir, isso, Maquiavel se dispõe a examinar os livros do historiador Tito Lívio fazendo “uma comparação entre fatos antigos e contemporâneos, de modo a facilitar-lhes a compreensão.” De modo que os leitores possam “tirar daqueles livros toda a utilidade que se deve buscar no estudo histórico”.
EU — Aqui, concordo com Maquiavel, e concordo ainda mais quando ele menciona que “É uma empresa difícil”.
Os estudos históricos devem ajudar a orientar a compreensão do presente e as ações atuais. Mas não creio que apenas por exemplos como diz Maquiavel. A ideia de que podemos encontrar exemplos no passado sugere, em Maquiavel, uma semelhança entre as diferentes épocas. Acho que há mais do que isso.
Por um lado, digo que há de fato semelhanças, mas que devem ser problematizadas: são semelhanças construídas por meio de uma seleção de elementos do passado examinado que possam ser colocados em analogia com elementos do presente. E essa construção (parcialmente artificial) precisa ser explicitada, não são simplesmente os fatos do passado por si sós que se apresentam como análogos aos da atualidade, embora nossa construção artificial de analogias dependa de elementos efetivamente presentes neles.
Por outro lado, há mais que analogias ou comparações: o passado em si mesmo ainda está parcialmente presente, ele deixou marcas que permanecem vivas, em múltiplas camadas sobrepostas, que estão por debaixo do presente e que são características dele — e neste sentido, o passado está aí, englobado no presente. Não todo o passado, e não do modo como se apresentava no tempo em que era vigente: parte desse passado está viva no subterrâneo, digamos assim, do presente, subdeterminando-o.
Nisto, sou portador de uma compreensão herdada de Flusser, em seu livro Natural:mente. O passado não “deixa de existir”: ele “submerge”, deixando apenas de “aparecer na superfície” do que é atual. Continua inclusive aparente, mas podemos dizer que sub-aparente, fazendo com que o presente se caracteriza como uma série de camadas de transparência sobrepostas umas às outras.
Flusser questionava o modelo linear do tempo repensando-o do ponto de vista existencialista. Propunha-se a “encarar o tempo de frente”, do seguinte modo:

O diagrama acima foi apresentado por Flusser em uma palestra a que acompanhei na adolescência. Não tenho condições hoje de localizar com precisão qual foi essa palestra.
Deste ponto de vista flusseriano, os acontecimentos viriam do futuro ao redor, na forma de possibilidades, entrariam no presente tornando-se fatos efetivos, e mergulhariam mais para fundo no mesmo presente tomando a forma de registros — o que significa que não seriam propriamente “deixados para trás”: o passado seria esse “fundo” registrado no centro do presente, ao redor do qual e apoiado no qual o presente se organiza.
Essa perspectiva flusseriana é adotada por mim numa versão um pouco mais complexa, porque incorporo a ela aquilo que chamo de “dialética multivariante”.
Apesar de minha proposta complexificar consideravelmente a de Flusser, ela se acrescenta à mesma por um procedimento bem simples: as setas do diagrama acima passam a ser substituídas por pares de setas com sentidos opostos, indicando em cada acontecimento uma polaridade dialética.
Polaridade dialética que, dependendo do momento, ocorre entre sua condição como possibilidade futura e sua condição como fato presente, e entre sua condição no presente como fato, e sua condição posterior, como passado registrado no fundo e na base desse presente. O tipo de dialética em jogo varia e precisa ser examinado em cada caso, incluindo a possibilidade de um “grau zero” de dialética, que recai em setas simples como as do diagrama de Flusser.
O registro passado pode estar na base do presente de diversas maneiras: como causa do presente, como presença simples que continua desde o passado, como programação de possibilidades entre as quais estava a do presente, como pano-de fundo contra o qual o presente se destaca, como pressuposto do presente… cada caso pode ser um desses, um pouco de todos, ou outras variedades de relação entre passado e presente… tudo depende do que for detectado no exame do grau e tipo de dialética com que a relação se apresenta. O grau de presença do passado, ou de relevância do passado no presente, depende disso também.
Quanto aos conteúdos do estudo histórico, Maquiavel está preocupado com questões políticas e militares — aliás naturalmente conjugadas em sua época.
De minha parte, preocupo-me com os processos de concentração de poder em todas as suas formas, política, militar, econômica, midiática-educacional, tecnológica etc. E tendo a concentrar-me em especial no poder sob as formas tecnológica e midiática.
Quanto ao poder tecnológico, concentro-me nele porque o fator técnico e tecnológico está diretamente conectado à eficácia, cuja busca está no certe dos processos de concentração de poder, na medida em que se iniciam como focos de poder de realização, para chegarem ao poder reflexivo de realização da própria concentração de poder.
Quanto ao poder midiático-educacional, concentro-me na verdade nos meios materiais (ou resistentes) de formação dos agentes históricos, e esses meios de formação (ou in-formação) em todo o mundo se concentram, atualmente, na mídia e nas instituições educacionais.
O próprio Maquiavel, ao escrever, está atuando nesse campo da in-formação dos agentes históricos, e está atuando no sentido de tornar as analogias históricas úteis precisamente para a in-formação desses agentes. Entretando, ele não compreende a coisa assim, pois para ele, o perfil do agente é uma coisa, e o modo como age é outra não necessariamente conectada a esse perfil — Maquiavel inclusive valorizará essa desconexão como um elemento de eficácia, quase pelas mesmas razões pelas quais faço a crítica parcial dessa mesma desconexão. Mas teremos ocasião de tratar do assunto mais adiante.
O conceito de “in-formação”, aqui, se baseia no de Flusser em Filosofia da caixa-preta. Mas ali Flusser fala de in-formação como forma impressa sobre algo. Como falo de agentes históricos, deve-se compreender que esse processo de in-formação não é o de uma simples impressão (como aliás a bem da verdade já não é exatamente o caso em Flusser, quando o lemos com mais cuidado). Há uma dialética em que o próprio receptor dessa “forma” atua em alguma medida e de algum modo no seu processo de tomada de forma, até pelo fato de “alterar” o seu “alterador”, para usarmos a terminologia característica de Flusser.
No caso de agentes históricos, essa atuação é ainda maior, precisamente por serem “agentes”.
Uma última observação: Maquiavel se concentra na história de Roma contada por Tito Lívio. Em uma breve passagem chega a fazer uma comparação com a democracia ateniense. Aqui, vou focalizar muito mais a democracia ateniense estendendo essa comparação — pois Maquiavel estava às voltas principalmente com monarquias e repúblicas oligárquicas, enquanto estou lidando, nos nossos tempos atuais, com democracias ou repúblicas oligárquicas disfarçadas de democracias.
Capítulo 1 - Como começaram as cidades, de modo geral
e como Roma, em particular, teve o seu início
Segundo Maquiavel as cidades são fundadas ou por naturais do país, como foi com Atenas ou Veneza, ou por extrangeiros, como no caso de Roma, que fundou inúmeras cidades fora dela para firmar o território do império.
Maquiavel vê a defesa e as questões militares como principais causas da fundação de cidades. Neste sentido se coloca na contramão das avaliações de perfil marxista que colocam a origem das cidades nas agregações de agentes econômicos em uma mesma região estrategicamente boa em termos de acesso. A perspectiva de Maquiavel tem um defensor atual em Paul Virilio.
EU — De minha parte, acho que cada caso deve ser examinado historicamente segundo suas condições particulares, e que se deve tomar cuidado com generalizações, evitando acima de tudo generalizar a prióri.
Mas podemos pressupor que as condições gerais da fundação de cidades mudam muito da antiguidade para a época de Maquiavel, na época de Maquiavel da região da Itália, ocupada por cidades-Estado, para outras regiões da Europa já tomadas por Estados nacionais, e dos Estados nacionais da época, com fronteiras instáveis e dependentes de guerras, para as condições atuais. Os elementos em que as analogias permanecem cabíveis precisam ser demarcados com cuidado.
Dito isto, o que chama a atenção nas colocações iniciais de Maquiavel neste capítulo?
Primeiro, a atenção que ele dá à questão da fundação das cidades, questão cuja importância ainda está por esclarecer. Segundo, que ao dizer que as cidades são fundadas ou pelos nativos do país ou por estrangeiros, ele não está observando um dado empírico, mas levantando um quadro de (duas) possibilidades que do ponto de vista lógico se excluem mutuamente. Ou isto, ou aquilo — as duas coisas conjuntamente não é possível porque se excluem. E a presença dessa bipolaridade se coloca como uma constatação evidente.
Maquiavel — completa o seu quadro de possibilidades com a de uma cidade fundada por um príncipe “para sua glória”.
EU — mas bem examinada, esta possibilidade ainda é apenas uma variação da primeira, se o príncipe é nativo, ou da segunda, se o príncipe é estrangeiro. Isto fica claro quando Maquiavel diz que “Uma cidade deve sua existência a homens livres quando um povo, movido pela doença, a fome ou a guerra, deixa a páreia dos seus pais para estabelecer-se em outro local — espontaneamente ou sob a direção de um príncipe.” [Grifo meu]. Um príncipe não funda uma cidade espetando sozinho ou com uma tropa uma bandeira num território. Ele a funda quando estabelece nesse território um povo.
Maquiavel — A importância da fundação para Maquiavel começa a se manifestar quando Maquiavel diz que na fundação de uma cidade se manifestam “a sabedoria e a sorte” dos fundadores [poderíamos utilizar aqui os termos de O príncipe e dizer “a virtú e a fortuna”]. A sabedoria “se revela em duas coisas: a escolha do local e a natureza das leis promulgadas”.
“Como os homens agem por necessidade ou por escolha, e a coragem sempre brilha mais intensamente quando a escolha é mais livre, deve-se considerar se não é mais vantajoso selecionar, para sede de uma cidade, local infértil, onde os habitantes, constrangidos ao trabalho, e menos inclinados ao ócio, possam viver unidos, sujeitos à concórdia pela situação de pobreza” [p. 20]
EU — o ponto interessante nesta passagem, é que Maquiavel detecta a questão dos meios materiais de formação dos agentes históricos. Como se vê claramente aqui, esses meios não se limitam aos meios tradicionais de informação, mas a tudo aquilo que contribui para essa tomada de forma, como as condições do território em que se vive por exemplo.
Entretanto Maquiavel complemente isto com o elemento expansionista já detectado antes em sua leitura por Fichte e Hobbes:
Maquiavel —
“[…] Esta escolha seria sem duvida mais sábia e mais útil se os homens se contentassem em viver com o que têm, e não buscassem ampliar seu território. Mas como estão condenados a garantir seu destino exclusivamente pelo poder, é preciso que fujam das regiões muito estéreis, e se fixem em terras fecundas, onde a riqueza do solo permita o desenvolvimento; onde os habitantes possam defender-se de ataques, dominando quem se oponha ao seu progresso” [p. 20 - grifos meus]
Existe aqui a ideia de que só é possível a um povo sobreviver lutando contra outros num processo constante de expansão. Fichte ressalta isto em Maquiavel como elemento mais atual de sua teoria, desmerecendo o valor da coisa no nível da política interna em função da existência de leis sólidas para garantir os direitos dos que não quisessem ter que expandir seu poder. Hobbes, ao contrário, ressalta isto nas interações humanas na política interna.
EU — Entre Fichte e Hobbes, fico com Hobbes na leitura de Maquiavel. Não acredito de maneira absolutamente nenhuma que as leis fossem suficientes na época de Fichte para conter em definitivo as tensões sociais, a não ser por uma visão muito curta do mesmo Fichte acerca do tecido sócio-político. Acredito que seriam suficientes quando muito para suavizar tais tensões.
A política interna para Fichte é considerada apenas aonde a presença do Estado se manifesta constantemente e sem falhas, o que é uma excessiva idealização para qualquer época e local na história da humanidade. Pelo contrário, se as tensões sociais são a gênese do direito e do Estado, não são gênese puramente temporal, mas gênese lógica constantemente presente (o que aliás não quer dizer que se deva aceitar isto como justificação suficiente para alguma necessidade de aceitação do direito e do Estado).
Além disso discordo também de Fichte — e aqui também de Hobbes e de Maquiavel — quanto à necessidade de se pressupor que os homens sejam “maus” ou que virão a agir com maldade: basta pressupor que irão agir segundo a força da entropia que os constrange, e isto é suficiente, porque ela implica um efeito similar, visto que implica processos de concentração de poder (com a respectiva dissolução de poderes, ou o respectivo desempoderamento, em toda a redondeza) — processos que tendem a se desenvolver até sua auto-aniquilação.
Com relação a Fichte, vou na verdade na direção oposta: ele afirmava que a política interna de Maquiavel era ultrapassada por força das leis já suficientemente firmadas para conter o conflito entre o expansionismo agressivo da força de indivíduos ou grupos dentro do Estado, e afirmava que esse expansionismo continuava nas relações internacionais.
Digo que hoje ocorre o oposto: os territórios dos Estados é que estão suficientemente firmados para tornarem poucos (ainda que intensos) os focos de conflito a esse respeito no mundo, e isso mesmo que as relações internacionais não sejam assim tão firmes no campo do direito — até porque aliás, de qualquer modo já são bem mais firmes que nos tempos de Fichte.
O crescente predomídio das democracias no mundo tende a aumentar o jogo de tensões internas nos Estados. As leis figuram então cada vez menos como simples formas de contenção (ou repressão) do expansionismo das forças de indivíduos e grupos, e cada vez mais como mediações nos conflitos entre elas e no jogo democrático dos direitos conflitantes uns com os outros. Na vida política democrática o direito tende muito mais ao gerenciamento de conflitos e tensões em busca de equilíbrios do que à pura e simples repressão.
Neste sentido, Maquiavel se torna cada vez mais atual no que diz respeito à política interna, e não cada vez menos. Se sua leitura por Fichte perde atualidade, e sua leitura por Hobbes adquire uma avaliação dúbia: ganha atualidade na medida em que focaliza essa questão das relações internas (por exemplo a partir de sua teoria da vanglória, do medo e de seus efeitos no imaginário, na autoimagem, dos agentes políticos) — mas perde essa atualidade na medida em que coincide com Fichte quanto ao caráter puramente repressivo do Estado de direito.
Maquiavel — Mais adiante na mesma p. 20 Maquiavel reforça sua atenção no que chamo de maios materiais de formação dos agentes históricos:
“Quanto à falta de vigor que um local assim fértil pode provocar nos cidadãos, é preciso que seja evitada pelas leis, que devem impor uma operosidade à qual o solo não obriga de modo natural”
etc. Maquiavel acentua a necessidade, neste caso, de “contínuo exercício” para não deixar que os exércitos percam a virilidade “efeminados” pela “sensualidade”do território fértil.
EU — O imaginário maquiaveliano carregado de temática sexual é uma curiosidade à parte, digna de algum estudo, mas o que me chama a atenção em especial nessa passagem acima é o caráter educacional que ele atribui às leis.
Concordo com a proposta de um direito educacional. Entretanto entendo essa educação como autoconhecimento, e o direito como tendo a função de refletir formalmente a limitação dos direitos uns pelos outros em busca da otimização de liberdades, contribuindo nesse sentido para o autoconhecimento e a orientação da sociedade em sua pluralidade de agentes e em suas possibilidades de convívio em equilíbrio democrático.
Maquiavel ainda pensa as leis sempre como uma imposição que deve modelar “de fora” os comportamentos, como se o ponto de partida das leis fossem os legisladores, e eles não fossem (como para mim são) apenas um ponto intermediário no caminho de algo que parte da própria sociedade para retornar a ela.
Maquiavel — É de se notar que para Maquiavel, na formação dos agentes políticos as facilidades corrompem, porque a realidade é uma realidade de luta, de conflitos, e para sobreviver nela é preciso ser acostumado a conquistar as coisas pela luta.
EU — Aqui discordo: há diversos caminhos possíveis e originais para se contornar essas condições de luta, que de fato tendem a se impor devido aos processos de concentração de poder. Mas nem tudo na vida se reduz a esses processos, e ainda que a vida política possa e até deva ser pensada a partir deles, ela não existe necessariamente desconectada de outras esferas da vida, esfera onde as lutas pelo poder já não são centrais nem relevantes. Maquiavel a meu ver peca por pensar a política demasiadamente isolada dessas outras esferas.
Entretanto, considero que os processos de concentração de poder tendem a ir dominando cada vez mais camadas das outras esferas da vida, instrumentalizando-as em seu favor — de modo que nem sempre basta “ignorar” esses processos para permanecer em uma esfera em que não penetrem: pelo contrário, essa penetração tende a crescer, e é preciso criar formas de resistência.

