Fragmentos de leitura dos Grundrisse de Marx
§1 - 22/03/2018 - Sobre uma crítica de Marx a Rousseau
e aos contratualistas em geral
A produção em Geral - Leitura pessoal do texto A. Introdução/ I. Produção, consumo, distribuição, troca (circulação) / 1) A produção em geral.
1.
Segundo Marx, há em certos pensadores "uma antecipação da 'sociedade burguesa', que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para sua maturidade". Essa antecipação, diz ele, aparece em pensadores da economia como Smith e Ricardo e em filósofos contratualistas como Rousseau, "que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza independentes". E Marx continua: "Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado." Essa antecipação (e aqui Marx deve estar se referindo principalmente aos contratualistas) aparece "como um ideal cuja existência estaria no passado. Não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da história."
Assim como Marx, também não acho que seja um ponto muito importante a ressaltar aqui (o mais importante é o modo como em seguida ele virá a tratar da questão da produção), mas discordo de Marx até certa medida no que acaba por dizer em relação aos contratualistas, neste ponto de importância menor. Em especial por ter apontado justamente Rousseau entre eles –– pois ocorre que Rousseau é o menos individualista deles, na sua visão das relações sociais.
Por mais que eu, pessoalmente, deteste os posicionamentos de Rousseau, não deixo de considerá-lo um adversário valoroso (assim como considero Platão, de quem ele se aproxima muito), e me sinto na obrigação de fazer-lhe a defesa em face de uma leitura –– a de Marx –– que me parece ressaltar demais o menos importante nele apenas para poder rechaçá-lo, desprezando o que ele pode ter a oferecer (inclusive ao próprio marxismo).
Para corrigir Marx em sua leitura de Rousseau, eu atentaria sobretudo para o fato de que em Rousseau existe algo bem pouco estudado mas de grande importância, assinalado em uma tese publicada pelo professor da USP Salinas Fortes (O paradoxo do espetáculo): em Rousseau há um ideal comunitarista e nada individualista (ainda que logo descartado por pessimismo), imaginado entre o "Bom selvagem" e a sociedade real de sua época, que ele considera corrompida pelo sentido de propriedade e pelo individualismo que dele decorre.
Veja-se bem: do mesmo mosdo que não sou rousseauísta (porque considero Rousseau preconceituoso em relação ao elemento teatral em nossas vidas, e também por meu antiplatonismo e minha forte aproximação em relação ao anti-rousseauísta Max Stirner), por outro lado também não sou marxista –– como se tornará logo bem claro no decorrer destes meus fragmentos de leitura... o que não me impede de considerar marx um outro adversário valoroso, assim como considero valorosos Platão e esse seu eco romântico-iluminista combinado a "antecipações burguesas", que é Rousseau.
Em seu "ideal cuja existência estaria no passado" (como aponta Marx), Rousseau considera não apenas o seu famoso "bom selvagem" alheio a qualquer relação social, mas também essa fase imediatamente seguinte que mencionei, em que haveria uma sociabilidade mínima formada pelo "transporte de sentimentos" de cada um aos demais e vice-versa que ocorre na imitação mútua, de modo que não teríamos aí propriamente indivíduos relacionados por contrato, mas um "contrato" tácito na verdade benm inadequadamente caracterizável como "contrato" porque não haveria propriamente "lados distintos" entrando nele. Cada "indivíduo" seria pouco mais que um mero corpo servindo como instrumento e canal de passagem de sentimentos para os demais. E nada disto está levado em consideração na devida medida por Marx.
Ainda mais interessante é constatar que em Rousseau, essa condição idealizada do indivíduo num passado igualmente idealizado (se não quisermos utilizar a expressão "imaginário"), essa sua condição de quase mero instrumento e canal de passagem de sentimentos, enfim, na verdade reduz ao mínimo sua individualidade, sua separação em relação a outros indivíduos. E até mesmo em relação às coisas naturais em geral ao seu redor, romanticamente, em relação à natureza como um todo –– como se pode constatar por exemplo na obra autobiográfica Devaneios de um caminhante solitário. A individualidade que Rousseau efetivamente mantém "pressuposta" em seu ideal, se reduz a quase que apenas a dos corpos, separados uns dos outros.
2.
A afirmação marxiana de que Rousseau estaria exprimindo antecipadamente o individualismo burguês das épocas seguintes não deixa de fazer algum sentido, mas essa antecipação não está aonde Marx pensa estar. O sentido dessa afirmação de Marx, por isso mesmo se reduz enormemente e perde quase toda a relevância enquanto base para comentário crítico. criticar Rousseau partindo daí é errôneo. Seu comentário acerca de um individualismo historicamente antecipado em Rousseau deveria apoiar-se em outra parte do pensamento desse filósofo.
O erro se agrava ainda mais quando consideramos que o passado "ideal" imaginado pelos contratualistas tem um caráter eminentemente metodológico. Se agrava porque o método desses pensadores que nos acostumamos a chamar de "contratualistas", tal como fundado por Hobbes e depois usado por Locke e Rousseau –– na defesa de posicionamentos diferentes (pois os três estão longe de defenderem o mesmo em política) –– na verdade pode ser utilizado por posicionamentos políticos tão divergentes, que a rigor o próprio Marx não deixaria de poder tirar proveito (e bom proveito) dele, se o quisesse.
De fato, ao contrário do que Marx supõe, o método comum a esses pensadores não pressupõe necessariamente que haja indivíduos a prióri antes de estarem contratualmente em sociedade... a não ser para aqueles que têm bem pouca imaginação no uso desse método. Essa pressuposição não está no método, não é intrínseca ou necessária para ele. Na verdade não está nem mesmo na noção de "contrato social" –– pois também não é intrínseca a essa noção nem necessária para ela, mesmo que seu uso mais comum costume ir nessa direção. O individualismo é posicionamento adotado muito frequentemente entre os que usam esse método. Não é parte do método em si mesmo. E a noção de "contrato social" não implica na verdade nada de muito diferente daquilo que o próprio Marx trata como
Rousseau aliás ainda não é, nem de longe, o melhor exemplo de um uso realmente criativo do método contratualista no sentido de trabalhá-lo sem pressuposições individualistas ou reduzindo-as ao mínimo que poderíamos imaginar. Mas ele já faz o suficiente para sugerir fortemente uma possibilidade de uso do método nessa direção.
Vejamos bem: o que Rousseau chama de "bom selvagem", considerado "individualmente" antes daquela primeira associação nada individualista entre bons selvagens, é uma unidade tão aberta ao mundo para deixá-lo fluir através de si mesma e para deixar-se fluir para o mundo, que não tem nada de privadamente "seu". rousseau pretende com isso estar descartando todas as diferenciações históricas de ápoca para época nos indivíduos para capturar o que estaria sempre universalmente presente neles: a falta ou ausência do "Bom selvagem".
Para Rousseau, o que há de comum entre todos nós enquanto seres humanos é essa carência, essa ausência do "bom selvagem em nós –– carência que acaba por se configurar na verdade como uma espécie de metáfora para exprimir quase o mesmo que o próprio Marx acolhe sob o nome de "Universal, ou o comum isolado por comparação", quando diz que "As determinações que valem para a produção em geral têm de ser corretamente isoladas" (p. 23 do original, p. 41 da edição aqui utilizada).
Só que Rousseau está buscando o que é universal nos indivíduos, não diretamente na produção. Está em busca do indivíduo em geral quando formula seu conceito do "bom selvagem", enquanto Marx está em busca da produção em geral. Rousseau não encontra os traços universais do indivíduo pelos quais procura, mas encontra a carência dele, o sentimento de sua ausência, de sua falta, como da falta de algo perdido. E é nesse sentido que Rousseau antecipa o individualismo burguês: combatendo-o antecipadamente –– porque o que o "Bom selvagem" reflete é uma não-individualidade perdida, uma integração perdida do indivíduo com o que lhe passa a ser "externo", incluindo as "outras pessoas".
3.
Marx poderia sim criticar Rousseau dizendo que ele não isolou corretamente as determinações que valem para o indivíduo em geral. Que ele errou nisso por ter se apegado, em seu "bom selvagem" apenas ao que há de comum entre os indivíduos sem considerar as diferenças, e por naturalizar e eternizar essa sua concepção do "bom selvagem" como se ela pudesse caracterizar os seres humanos em sua individualidade em toda e qualquer época do passado ao futuro, procurando representar nessa concepção uma suposta "natureza humana" imutável, invariável. Mas ao invés disso, prefere deixar essa crítica para "Bastiat, Carey, Proudhon etc." (e está errado em relação a Proudhon).
No caso de Rousseau, Marx procura criticá-lo como se ele estivesse apenas idealizando (e valorizando) um individualismo imaginário no passado, e com isso antecipando o individualismo capitalista em processo de formação. Faz parecer que ele abraça essa tendência individualista e segue adiante aliado a ela –– o que não é verdade. Rousseau não está valorizando o individualismo. Está fazendo antecipadamente a sua denúncia crítica por meio de sua confrontação com um ideal que não, não é individualista, e que mais que isto, pretende ser o oposto do individualismo (ainda que talvez não o consiga com perfeição).
O que Marx quer dizer quando fala da importância de determinarmos corretamente o "Universal, ou o comum isolado por comparação", é que os processos de produção que vamos observando ao longo do tempo nas sociedades, apesar de mudarem de época para época, não mudam sempre de maneira total e completa. Eles perduram por algum tempo ao assumirem certa forma, configurando "estágios" de desenvolvimento, mas há diferenças de um estágio para outro cuja determinação é igualmente necessária.
Marx critica outros pensadores por julgar que desconsideram esses cuidados históricos, essa necessidade de limitação do suposto "universal" a um contexto histórico, quando o isolam. Por isso mesmo, no caso da produção, o mais correto seria tratar esse "universal" apenas como "o comum isolado por comparação" em algum estágio de desenvolvimento dessa produção –– e se menciona a questão do individualismo em Rousseau, é porque julga (acertadamente) que há paralelo entre o que economistas como Smith e Ricardo fazem ao tratar de traços universais presentes na produção em geral, e o que contratualistas como Rousseau fazem ao tratar de traços universais do cidadão em geral.
4.
Em termos mais simples, um dos erros de Marx está em insinuar que o "Bom selvagem" supostamente universal encontrado por Rousseau (porque sim, o próprio Rousseau o supõe universal) seria um sinal da adesão do filósofo ao processo de ascenção do individualismo, quando o que Rousseau realmente encontra é a falta, a ausência moral desse "Bom selvagem", fazendo a crítica dessa ausência contra o individualismo.
O outro erro de Marx –– erro nada original aliás, um erro que eu diria que não passa de "tediosamente árida fantasia do locus communis" (para usar a linguagem com que ele próprio se refere a outros) –– está em supor que algo como um contrato social pressupõe necessariamente individualismo e abandono de liberdade pelos indivíduos envolvidos em troca por benefícios de um poder superior estabelecido nesse contrato. Tal suposição é um lugar-comum tão forte e generalizado quanto bizarro.
A noção de um contrato social na verdade é a de um contrato tácito –– e não escrito ou oficializado em algum lugar –– estabelecendo de comum acordo (sejam quais forem as razões ou objetivos disto) certas normas ou padrões de comportamento, e nada mais que isso.
Ao nascermos em uma comunidade humana qualquer, nascemos já imersos em normas e padrões tácitos de comportamento seguidos de maneira generalizada pelas pessoas. Normas e padrões aos quais vamos mais tarde julgando e avaliando, para irmos decidindo manter aderência a tais comportamentos generalizados ou não. Ou então vamos deixando que tais normas e padrões de comportamento nos levem sem qualquer julgamento ou avaliação. Ou ainda tentamos reagir... e somos arrastados à força por eles.
Passar a recusar aderência a tais normas ou padrões tácitos de comportamento gera reações coletivas contra o que se está recusando. Gera resistências, gera "consequências"... assim como há consequências imputadas àquele que rompe um contrato. E é apenas isto o que na verdade caracteriza a noção de "contrato social": a presença de certas normas ou padrões de comportamento generalizados, e resistentes contra outros comportamentos que, divergentes, não adiram a eles. Para além disto, a noção de "contrato" aqui não passa de mera metáfora.
As metáforas não são inocentes. A comparação disto com um "contrato" pode ser sim, de fato, apontada (e muito evidentemente) como uma referência a elementos da cultura burguesa (e empresarial) em ascenção na época de Rousseau. Mas a metáfora neste caso é, repito, a aparência, apenas a aparência estética (para usarmos aqui o linguajar de Marx contra o próprio Marx). Uma referência meramenrte estética à cultura burguesa e empresarial em ascenção na época, e não algo tão "profundo" quanto Marx faz parecer.
Na verdade essa metáfora de superfície está fundada em uma noção muito mais simples e mais profunda (ou mais duradoura e generalizadamente presente na história humana) que não está referida particularmente ao mundo burguês ou capitalista: a noção de que agir em conformidade com um comportamento generalizado, e reagir contra quem não age assim, equivale a dizer sim a esse comportamento generalizado, equivale a concordar com ele, a entrar de acordo com muitos em relação a ele. E é nesse sentido que se pode considerar a coisa metaforicamente como um "pacto" ou "contrato" geral, social. A metáfora utilizada pelos assim chamados "contratualistas" exprime apenas e simplesmente a constatação da presença desse comportamento generalizado e resistente contra divergências.
A força que teremos para levar adiante alguma possível recusa dessas normas e padrões em face do que nos será imputado como consequência por fazê-lo, a força que teremos para colocar em prática nossa decisão, caso pretendamos comper com esse "pacto" generalizado é um outro fator a considerar seriamente. Contudo, mais uma vez, essa consideração não invalida a ideia de "contrato social" como metáfora.
Desde muito antes de qualquer semente da sociedade burguesa apontada por Marx ou pelos autores mencionados por ele aqui, um tal "contrato" já pode ser cabalmente observado em inúmeras e muito diversas sociedades do mundo –– constatado sem nenhum exercício intelectual inclusive –– em qualquer agrupamento de pessoas cujas atividades se conjugam de algum modo e de comum acordo, por exemplo em um grupo que vise atingir um mesmo objetivo comum com essa conjugação de suas atividades, ou em um agrupamento de pessoas que visem simplesmente uma coexistência pacífica. Basta que além disso se trate de um grupo em que comportamentos divergentes soem como ameaçadores ou sejam por qualquer outra razão recusados e reprimidos –– e note-se bem: pouco importa se estamos falando de comportamentos divergentes de indivíduos ou de subgrupos dentro do grupo maior. É disto que os contratualistas estão falando quando falam em "contrato social", desses padrões de comportamento generalizadamente aceitos e de sua resistência contra comportamentos divergentes –– e este, a existência disto, é o pressuposto de que partem.
Se essas regras ou padrões generalizados de comportamento objetivam a formação de um poder soberano, já não é algo intrínseco ao método contratualista –– e nem mesmo à metáfora do "contrato social" de que se utilizam. É uma questão de posicionamento de cada um deles em política, uma questão ligada ao que pretendem defender politicamente utilizando esse método. Mas o que os caracteriza em geral como o grupo dos "contratualistas" não são esses posicionamentos políticos, tão diversos, tão diferentes uns dos outros. Para constatá-lo basta examinar cuidadosamente diferenças de posicionamento dos diversos "contratualistas" do passado e da atualidade, como Hobbes, Locke, Rousseau, Rawls ou Nozick.
5.
O que os caracteriza em geral como seguidores deste método é o seguinte: todos eles partem do uso da negação imaginária de algo existente no mundo atual, para com isso tirarem conclusões a respeito desse mundo atual e real e do quanto aquilo que foi imaginariamente negado faria falta ou não, e por que. O raciocínio contratualista é do tipo "se tal coisa, mesmo que seja alguma coisa que nos tempos atuais parece tacitamente aceita de modo generalizado, não existisse, como seria? As coisas seriam piores ou melhores? Em que medida? Por quê? Que conclusões podemos extrair disto?".
Por exemplo: no tempo de Hobbes, embora a Inglaterra em particular estivesse numa guerra civil em torno dessa questão (uma guerra civil contrapondo o Parlamento e o Rei), havia monarquias absolutas e consideradas de direito divino em outros Estados da Europa. E Hobbes tenta imaginar como seria a vida sem qualquer poder instituído acima dos indivíduos. Depois, com base nisto, parte para uma avaliação crítica das possibilidades, pontos fortes e fraquezas de formas de poder diferentes –– tais como a soberania monárquica ou a de um grupo (Parlamento?).
Mesmo sem ser individualista como Hobbes, Rousseau de fato utiliza o método contratualista com um ponto de partida (um "estado de natureza", como eles diziam na época, sugerindo a artificialidade do que viria a ser construído depois) semelhante. Em seu ponto de partida metodológico, ambos escolhem negar imaginariamente (entre outras coisas como o Estado e a moral) o próprio convívio social. Ambos imaginam como seriam as coisas sem o convívio social. E o que resulta disso, no caso de Rousseau, é aquele quase não-indivíduo ao qual chama de "Bom selvagem".
Mas é importante notar que estaríamos seguindo o mesmo exato método se ao invés disso partíssemos do contrário, negando imaginariamente a existência de indivíduos, e considerando como seriam as coisas se a vida humana só existisse inserida em uma massa humana maior e sem qualquer independência em relação a ela. Mas este não é de modo algum o caminho de Marx. Ele não pretende partir do imaginário. pretende partir dos fatos tal como historicamente evidenciados... será que é mesmo o que faz?
Sigamos adiante.
Hobbes, em sua aplicação particular do método contratualista que desenvolveu, avança também para a avaliação crítica do que haveria de desejável ou não naquela existência sem as coisas imaginariamente negadas por ele, e por consequência, avalia também o que haveria de desejável ou não nas mesmas coisas imaginariamente negadas, tais como as diferentes formas de organização de um poder institucional soberano, Monarquia ou Parlamentarismo.
Ele ainda faz da própria consideração da ascenção do soberano como produto, resultado de um pacto social, uma crítica ao direito divino dos reis, que então estariam no poder devido a esse pacto, e não a qualquer interferência divina em favor de seu direito ao poder.
Quer estejamos falando de Hobbes, Locke, Rousseau ou outro seguidor deste mesmo método, tais posicionamentos de um contratualista –– ao contrário do que Marx parece julgar –– já não estão inscritos no próprio método, mas no modo como aquele contratualista em particular se utiliza dele. Por exemplo no que escolhe negar imaginariamente, e no modo como imagina que seria a vida sem esse elemento imaginariamente negado. Outro contratualista (Rousseau ou Robert Nozick por exemplo) utilizaria o mesmo método de Hobbes tomando posicionamentos diferentes.
Não significa que o método seja de validade universal (no sentido forte) ou "eterna". Nem tampouco que ele esteja total, completa e absolutamente isento da contaminação por certos valores e posicionamentos. E no caso do contratualismo, há sim contaminação por antecipação do crescente ambiente empresarial-burguês. Mas significa sim que Marx não detectou tão bem essa contaminação quanto julga ter detectado, nem avaliou o seu peso e relevância tão bem como julga ter feito.
Marx diz: "Quanto mais fundo voltamos na história, mais o indivíduo, e por isso também o indivíduo que produz, aparece como dependente, como membro, de um todo maior: de início, e de maneira totalmente natural, na família e na família ampliada em tribo [Stamm]; mais tarde, nas diversas formas de comunidade resultantes do conflito e da fusão das tribos" –– ele procura com isto apontar o crescimento de uma artificialização das relações sociais no capitalismo conectada ao individualismo crescente e a essa noção de que a vida social se construiria artificialmente por meio de algo como um "pacto" entre indivíduos que seriam a base natural, no lugar que antes cabia ao social. Pode não estar errado quanto a esse deslocamento de base do social para o individual naquela época, e até quanto a uma contaminação do pensamento contratualista, por esse deslocamento de base. Mas não detectou direito onde essa contaminação se apresenta neles. E sua distinção entre o "natural" e o "artificial" é também bastante questionável –– a discussão do assunto mereceria aliás um tópico inteiro somente a esse respeito.
Pense-se no seguinte: de que modo deixariam de haver nessas sociedades, em sua própria constituição enquanto sociedades, aliás, padrões ou normas generalizadas de comportamento, e junto a esses padrões e normas, resistências contra comportamentos que divergissem desses deles?
É "natural" a aderência a um padrão de comportamento generalizado por parte de um agente forçado a essa aderência, seja esse agente um indivíduo, um grupo ou uma organização institucional?
Ou será mesmo que Marx pretende –– a sério, e contra todas as evidências históricas –– afirmar que as divergências não existiam no passado, ou que tais agrupamentos formados de maneira "totalmente natural" como ele diz, nunca resistiram, agressivamente inclusive, contra comportamentos divergentes?
Ah, ora...
Puf!
§2 - Abril/2018 - Sobre uma crítica a Proudhon
1.
Ainda na Introdução dos Grundrisse –– no tópico I - Produção, consumo, distribuição (circulação), item 3 do primeiro ponto –– Marx faz uma crítica superficial e frívola a Proudhon, que não deixa claras as posições em confronto, a sua e a do anarquista francês.
O que Marx diz é, exatamente (na medida em que seja exata a tradução de que me sirvo) o seguinte: "Para Proudhon, entre outros, é naturalmente cômodo produzir uma explicação histórico-filosófica da origem de uma relação econômica, cuja gênese história ignora, com a mitologia de que Adão ou Prometeu esbarrou na ideia pronta e acabada, que foi então introduzida etc. Não há nada mais tediosamente árido do que as fantasias do locus communis".
Em minhas notas de rodapé da primeira leitura que fiz desse texto dos Grundrisse o que anotei sobre esta passagem foi isto: "Marx pensa atingir o conteúdo criticando o estilo. Parece não ter entendido Proudhon". Achei agora necessário rever criticamente esse meu antigo comentário, então, para isso, reli o Filosofia da Miséria de Proudhon até o ponto em que entra em jogo a tal referência de Proudhon ao mito de Prometeu. O que está em jogo, neste ponto do confronto Marx X Proudhon, é a questão do valor em economia.
Proudhon defende o que chama de teoria do valor constituído, ao que parece já criticada por Marx –– mas de maneira em muitos pontos vaga e até confusa em seu Miséria da filosofia, no qual parte na verdade de uma imagem quase inteiramente falsa e fortemente difamatória de Proudhon, construída com tão evidente má fé que coloca a crítica de imediato sob suspeita.
Já fiz uma crítica consideravelmente detalhada desse livro de Marx (Miséria da filosofia) no final de minha tese de doutoramento sobre Proudhon –– mas a tese estava centrada na filosofia e no método proudhonianos, e a crítica que fiz não focalizou talvez com o devido cuidado essa questão econômica da teoria do valor, de modo que sinto agora a necessidade de revisitá-la.
Do mesmo modo, sinto a necessidade de examinar com mais cuidado a teoria do valor constituído defendida por Proudhon –– da qual confesso não ter formado ainda uma noção perfeitamente clara e completa. Essa mesma (ou muito similar) teoria do valor constituído que Proudhon defende parece ter sido defendida também, coincidentemente e na mesma época, por um outro pensador socialista (um saint-simoniano) menos conhecido chamado Rodbertus, que alega não tê-la retomado de Proudhon. Passei a colocar-me então como tarefa, neste ponto, procurar informações sobre a teoria de Rodbertus, para ver se me ajuda lançando alguma luz sobre a de Proudhon.
No caso de Proudhon posso antecipar desde já: Marx o acusa aqui de ignorar as origens históricas de uma relação econômica (a capitalista) substituindo-as pela referência de lugar-comum a um mito como o de Prometeu. Errado. O assunto de Proudhon quando menciona esse mito não são as origens da relação capitalista –– como também não é o assunto do próprio Max neste momento dos Grundrisse, aliás. O assunto tratado por ambos, aqui, neste ponto de confronto com Proudhon que Marx estabeleceu ao referir-se ao "Prometeu" de que Proudhon fala, é a já mencionada questão do valor em economia. Proudhon está apenas utilizando uma metáfora. Criticar a metáfora não atinge o conteúdo a que se faz referência com ela, destarte mantenho o que anotei em rodapé em minha antiga leitura dos Grundrisse.
Note-se além disso que o próprio Marx neste ponto do seu texto não está respondendo à questão de maneira ampla com referência à história da origem dessa relação, mas de maneira técnica e focalizada no estabelecimento do valor dos bens a partir do trabalho. Sim, antes disso Marx menciona de fato algumas coisas sobre as origens dessa relação capitalista, intercalando-as com comentários críticos dirigidos a economistas, fala sobre a produção da ideologia individualista na sociedade capitalista, e fala sobre estágios de desenvolvimento econômico.
Mas quando introduz sua teoria do valor-trabalho, ela não emerge logicamente desses assuntos tratados pouco antes: emerge apenas como um novo assunto, alinhado ao mesmo tipo de posicionamento geral que teansparece nesses assuntos –– de modo que sua crítica à maneira (não-histórica, e sim sociológica) pela qual Proudhon introduz a teoria do valor constituído não faz nenhum sentido (...a não ser o de uma sanha antiproudhonina de Marx).
Por outro lado, para sermos justos com Marx não podemos esquecer que os Grundrisse são um rascunho, um esboço. Não podemos esquecer que o fato de esta gênese lógica do valor-trabalho marxiano no estudo histórico da origem da relação capitalista não aparecer num claro e completo encadeamento lógico neste início dos Grundrisse não impede, de qualquer modo, que ela venha a aparecer mais adiante no livro, ou em outros textos. É uma coisa que ainda terei de examinar se quiser compreender bem Marx, visto que ao criticar a falta disso em Proudhon ele nos faz supor que isto deve estar presente nele em alguma parte –– e estou longe de ser um leitor assíduo de Marx para localizar isso já de saída e de memória no vasto e denso conjunto das obras de Marx.
O fato é que Marx está firmando aqui, nesta passagem específica dos Grundrisse, a sua teoria do valor-trabalho. Este é seu assunto central aqui, e não a história da origem da relação capitalista. E ele a está firmando contra a teoria do valor constituído de Proudhon... que é também uma teoria da constituição do valor a partir do trabalho, importa notar –– mas bastante diferente daquela de Marx.
Posso antecipar por enquanto, segundo o pouco que pude captar até aqui, que a teoria de Proudhon considera o cálculo do valor a partir da dinâmica conjunta de toda a sociedade, enquanto um todo produtor e consumidor de seus produtos, que segue nessas atividades de produção e consumo uma certa lógica, ao mesmo tempo que esse todo, paradoxalmente, se fraciona em "partidos" (divergências, conflitos sociais) que se aglutinam em dois extremos opostos, e cujos posicionamentos acabam se refletindo nos estudos econômicos. Esse todo oferesse base a um raciocínio que parece caminhar no sentido do estabelecimento do valor entre outras coisas a partir de pesquisas de mercado e de consumo, dos sensos e da contabilidade –– mas numa lógica em que o motor de tudo isto seria o trabalho enquanto atividade coletiva.
Esse "todo" produtor e consumidor considerado por Proudhon (e que é o alvo de sua metáfora mítica, sendo chamado por ele de "Prometeu") seria uma unidade social imanente, formada de oposições dialéticas, atuando por sua vez contra uma outra unidade, esta transcendente e apenas hipotética, chamada "Deus" –– mais precisamente, atuando contra a própria suposição de uma autoridade transcendente e contra seus efeitos.
A fonte dessa noção de um todo produtor e consumidor dialeticamente produzido e imanente, na teoria de Proudhon, me parece ser a teoria da mais-valia levantada por Proudhon naquele seu livro bem anterior, de juventude, que inaugurou sua fama internacional: O que é a propriedade?.
Neste livro de juventude, Proudhon observa, com base em Adam Smith, que uma equipe de trabalhadores bem afinada sempre produz em seu trabalho conjunto um excedente bem acima do que pode ser produzido pela soma dos trabalhos individuais desses trabalhadores, se estiverem trabalhando isolados uns dos outros. Mas também avança para além de Adam Smith.
E avançando para além de Adam Smith em um posicionamento que acaba por ser de oposição a ele, Proudhon conclui disso que tal excedente não pode ser cedido ao patrão (essa unidade exterior, transcendente ao conjunto dos trabalhadores), porque não é de seu direito. Nem tampouco pode ser rateado entre os trabalhadores individualmente –– porque é algo que só pôde ter existência na conjunção de seus esforços. Conclui em direção oposta à de Adam Smith, em suma, que a conjunção dos esforços desses trabalhadores criou uma entidade coletiva de maior poder produtivo, imanente às diferenças mutuamente complementares dos trabalhadores que foram postas em ação, entidade cuja realidade pode ser comprovada precisamente por esse excedente, real e mensurável, e que tem o direito sobre esse excedente.
O todo social de que Proudhon fala, dialeticamente imanente (como síntese) às diferenças e divergências e oposições que fraturam a sociedade –– o "Prometeu" de quem Marx não gostou –– me parece ter emergido, no pensamento de Proudhon, daquele primeiro raciocínio no livro O que é a propriedade? (do qual Marx gostou), passando no meio do caminho pela formulação do método dialético "serial" de Proudhon em seu Criação da ordem na humanidade ou Princípios de organização política (no qual Marx me parece ter gostado talvez apenas da noção de "intuição sintética da diversidade" –– não sei se de algo mais). Posto portanto que a avaliação geral (e incorreta) de Marx, no que diz respeito a filosofia e método, é a de que Proudhon é um hegeliano que não entendeu hegel, isto me leva a especular em que medida a ruptura de Marx com Proudhon (para além das questões pessoais e menores e menos relevantes, como raiva, inveja, orgulho ferido ou bobagens afins) não teve a ver talvez mais com a recusa do hegelianismo por parte de Proudhon.
É que Proudhon, ao invés de seguir a dialética de Hegel, pretende reconstruí-la do zero em outros termos a partir de suas origens no debate com Fichte e Schelling. Proudhon pretende debater com os três, Fichte, Schelling e Hegel, de igual para igual, construindo por seu próprio caminho uma versão peculiar de dialética, sem absolutamente nenhuma reverência a qualquer suposta autoridade intelectual dos mesmos.
E Marx, por outro lado, considera Hegel com grande reverência, ao mesmo tempo que procura invertê-lo com certa irreverência rebelde, mas nessa inversão e irreverência não deixa de indiretamente reverenciá-lo, e quando se depara com o método de Proudhon, ao invés de procurar aprendê-lo (mesmo que para criticá-lo) julga que Proudhon não entendeu Hegel –– há um pouco de culpa de Proudhon nisto, porque procurava manter o quanto possível uma retórica superficialmente hegeliana e frequentes referências a Hegel visando maior aproximação em relação aos jovens socialistas ateus da Alemanha, na maioria de extração hegeliana, pois se sentia deslocado no socialismo cristão dominante na França.
§3 - /2018 (ainda em projeto) - Sobre a utilidade da abstração do "universal"
§4 - /2018 (ainda em projeto) - Sobre a abstração da produção em sentido geral ou "universal"

